Nascido em 19 de dezembro de 1842, na aldeia alpina de Fraciscio di
Campodolcino, Luís foi o nono dos treze filhos de uma família montanhesa dotada
de sólidos princípios cristãos.
O pai, Lorenzo di Tomaso Guanella, corpulento, robusto e de rija
personalidade, inspirava confiança pela sua simples presença. Assim o
descreverá o filho, em sua Autobiografia: "Esbanjava saúde e seu caráter
era firme e decidido, à semelhança do monte Calcagnolo, logo acima de
Fraciscio".1
A mãe, Maria Antonieta Bianchi, piedosa e dedicada ao trabalho, como o
marido, contrastava com este por sua notável doçura de trato. A seu respeito
escreveu o padre Luís Guanella: "O peso da autoridade paterna, no tocante
aos filhos, era contrabalançado, providencialmente, pela mãe [...] uma mulher
criativa e muito amorosa; um tesouro da Providência!".2
Entre os irmãos, todos se relacionavam bem. Mas Catarina, apenas um ano
mais velha, foi sua predileta. Ainda crianças, conversavam sobre as peripécias
dos santos e aprenderam a ver nos pobres a figura de Jesus. Perto de sua casa,
havia uma rocha com cavidades que pareciam panelas. Ali, as inocentes crianças
misturavam água e terra, e mexiam aquela mescla dizendo: "Quando formos
adultos, faremos assim a sopa dos pobres".3
Sinais precoces da
vocação
Desde muito cedo, numerosos indícios, premonições e acontecimentos
extraordinários iam indicando ao pequeno Luís as vias traçadas para ele pela
Providência Divina.
O primeiro desses fatos ocorreu tendo ele apenas seis anos de idade, na
festa de São João Batista. Encontrava-se na Praça da Matriz de Campodolcino,
junto com o tio e o cunhado, quando este último deu- -lhe de presente um
saquinho de diavoletti, deliciosas balas de menta, justamente na hora de soar o
sino para a Missa.
Não querendo entrar na igreja com os doces na mão, foi escondê-los num
monte de lenha, onde estariam a salvo da cobiça de outra criança. Nesse
momento, ouviu palmas e viu junto à porta da Prefeitura um velhinho que o
fitava. O santo o descreve na mesma Autobiografia: "Era franzino, de
cabelos brancos, rosto moreno; trajava calças curtas, as meias eram de lã não
tingida, seu rosto amável como que implorava aqueles doces".4 Com medo,
escondeu as balas e, quando se voltou para olhar, o homem havia desaparecido...
Aquela imagem nunca mais se apagou de sua mente. Ela sempre vai retornar
"quando do encontro com outros velhinhos, suplicando por um pouco de bem e
de doçura ao término da vida".5
Outro fato marcante aconteceu no dia de sua Primeira Comunhão, aos nove
anos. Por ser Quinta-Feira Santa, não houve festa e, regressando a casa, mandaram-no
cuidar das ovelhas, como em qualquer dia comum. Ainda tocado pela graça,
sentou-se em um dos gramados da colina Motto, parecido a um sofá, onde
costumava descansar enquanto pastava o rebanho, e pôs-se a rezar a Nossa
Senhora, agradecendo-Lhe a ventura de haver recebido Jesus em seu coração.
Sentia-se tomado por uma suave doçura que o impelia a fazer generosos
bons propósitos. Contudo, a certa altura caiu no sono com seu livrinho de
orações nas mãos e foi acordado por uma voz feminina que o chamava pelo nome.
Não vendo ninguém ao redor, julgou tratar- -se de um sonho. Retomou a leitura e
adormeceu novamente.
Mais uma vez, o fato se repetiu. E, como aconteceu com Samuel (cf. II Sm
3, 8), ainda houve uma terceira vez, na qual a voz se fez ouvir mais forte e
nítida: "Luís, Luís". Nesse momento, narra o santo, "eis que
vejo uma Senhora estendendo seu braço direito como a indicar alguma coisa. Ela
me disse: ‘Quando você for adulto, fará tudo isso em prol dos pobres'. E como
num telão, vi tudo o que deveria fazer".6
Forjando o
temperamento
Aos doze anos Luís recebeu uma bolsa de estudos e matriculou-se no
Colégio Gálio, em Como. Para esse pastorzinho acostumado às liberdades do campo
e aos grandiosos panoramas alpinos, não faltaram sofrimentos na adaptação à
rígida disciplina escolar. O colégio lhe parecia uma prisão. Não obstante, isso
o ajudou a dominar seu caráter enérgico, por vezes impulsivo e irascível, e a
manifestar os aspectos amáveis, expansivos e afetuosos do seu temperamento,
herdados da mãe.
Fortalecido pela frequência aos Sacramentos e sua ardorosa devoção a
Maria, ali cultivou os germens da vocação, manteve-se firme em seus princípios
e inabalável no grande apreço às virtudes da castidade e da modéstia, apesar
dos ventos revolucionários e liberais que sopravam na Itália e no mundo.
Após seis anos de colégio, ingressou no seminário diocesano Santo
Abôndio, onde ficou ainda mais vincada a vocação específica que a Providência
lhe dera desde a infância. Ao retornar, durante as férias, à sua aldeia natal,
empenhava-se em ajudar os pobres e enfermos da região, sobretudo os mais
desamparados.
"Uma espada de
fogo no ministério santo"
Em um ambiente de ressentimento e raiva, marcado pelas profanações de
igrejas realizadas em Como pelos seguidores de Garibaldi, Luís foi ordenado
presbítero, em 26 de maio de 1866, por Dom Bernardino Frascolla, Bispo de
Foggia.
Naquele dia, com a alma transbordante de júbilo, o novo sacerdote fez
uma promessa a Deus e a seus irmãos: "Quero ser uma espada de fogo no
ministério santo!".7 Com semelhante propósito, explica um dos seus
biógrafos, "o jovem demonstrara capacidade de sonhar e de ‘almejar coisas
grandiosas'; desposar a causa dos mais pobres, priorizando o amor a Deus e aos
irmãos".8
Celebrou sua primeira Missa em Prosto, onde havia servido como diácono,
na solenidade de Corpus Christi, e ali permaneceu cerca de um ano como vigário.
Nomeado pároco de Savogno, valeu-se de seu diploma de mestre para ali
abrir uma escola, que logo se encheu de alunos. Dedicou-se, então, com grande
entusiasmo ao apostolado com os mais pobres durante oito anos. Dava formação
religiosa a pessoas de todas as idades, convidando-as a se unirem ao Santo
Padre e alertando-as a respeito das novas doutrinas da época, hostis à Igreja.
Por isso e, sobretudo, pela publicação de um livreto intitulado Saggio di
ammonimenti, contendo tais ensinamentos, acabou sendo fichado pela autoridade
civil como "elemento perigoso". Sua escola foi fechada e ele viu-se
forçado a sair da diocese.
Três anos de
"aprendizagem" com Dom Bosco
Atraído pela pessoa de São João Bosco, optou por se dirigir a Turim. Ali
passou três anos (1875-1878) em "aprendizagem", como diria depois,
seguindo os passos do fundador dos salesianos no caminho da santidade e
colaborando com sua obra pedagógica em favor da juventude. Nesta mesma ocasião,
conheceu a obra caritativa de São José de Cottolengo, a qual também deixou profundas
impressões em sua alma.
Contudo, tinha muitas dúvidas e inquietações. Estaria seguindo o caminho
para o qual se sentia chamado? Onde ficava a realização de tudo quanto vira no
dia de sua Primeira Comunhão? Em seu coração continuava a soar a voz da Providência,
incitando-o a fundar uma instituição própria, para o que muito colaborou todo
esse tempo de provações e experiência.
Convocado por seu Bispo, regressou à Diocese de Como. Sair de Turim,
separar-se dos salesianos e principalmente de Dom Bosco, foi- -lhe muito
doloroso. "Não senti tamanha dor nem mesmo quando faleceram meus pais,
tendo-os em meus braços" 9, afirma em sua Autobiografia.
Primeira casa da
Divina Providência
Na paróquia de Traona, para onde foi enviado em 1878, com a missão de
ajudar o pároco enfermo, tentou transformar um antigo convento em escola para
jovens pobres aspirantes ao sacerdócio, no estilo salesiano. Entretanto, era
ainda considerado um "padre sob suspeita" e não conseguiu a
necessária autorização do poder civil.
O Bispo transferiu-o, em 1881, para Olmo, paróquia confinada entre altas
montanhas, onde talvez pudesse ficar livre da desconfiança de exercer
"perigosas influências" contra o governo. Ali, sentia-se exilado e
abandonado por Deus, vendo impossível a realização de seu chamado.
Poucos meses depois, recebeu ordem de ir para Pianello, onde haveriam de
cessar essas provações. Encontrou ali um orfanato e um asilo fundados por seu
predecessor recém- falecido, o padre Carlos Coppini, postos sob os cuidados de
algumas jovens aspirantes à vida religiosa. Foi a partir deste empreendimento
que se originou, em 1886, sua primeira fundação, a Congregação das Filhas de
Santa Maria da Providência, contando com a valiosa colaboração da Madre
Marcelina Bosatta e de sua irmã, a Beata Clara Bosatta.
Sempre dócil à vontade divina, dizia Dom Guanella: "O segredo da
perfeição é fazer a vontade de Deus".10 Abriu por fim, em Como, a primeira
Casa da Divina Providência - mesmo nome utilizado por São José de Cottolengo -,
com o objetivo de atender os pobres e necessitados. A instituição começou a
crescer e não faltaram generosos benfeitores nem almas dispostas a se dedicarem
àquela obra de caridade.
Numa viagem a Turim, pediu orientação a Dom Bosco sobre seu desejo de
fundar também um instituto masculino. Este lhe mostrou a conveniência de tal
empresa e nasceu, assim, sob as bênçãos do Arcebispo de Milão, Beato André
Carlos Ferrari - que até 1874 fora Bispo de Como - a Congregação dos Servos da
Caridade.
Em 1908, com os
primeiros membros da Congregação
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Erigida a obra canonicamente, com a colaboração dos padres Aurélio
Bacciarini e Leonardo Mazzucchi, no dia 24 de março de 1908, chegou o momento
tão longamente aguardado: Dom Guanella e um pequeno grupo de sacerdotes
emitiram diante do sacrário os votos perpétuos de pobreza, castidade e
obediência.
Chamados a
pertencer à família divina
A espiritualidade do santo fundador baseava-se na compreensão do
Evangelho como a história de amor de um progenitor para com seus filhos: Deus é
Pai de todos, e Pai Providente, que cuida de cada um, especialmente dos mais
débeis e necessitados.
Por meio de Jesus Cristo, todos são chamados a fazer parte da família
divina. E nela merecem especial ajuda as pessoas mais necessitadas, como os
anciãos abandonados, os órfãos, os enfermos terminais desenganados, ou os
deficientes físicos e psíquicos.
Resumia ele a formação a ser dada dentro dessa família divina com o lema
"Pão e Senhor".11 O "Pão" seria o desenvolvimento integral
da pessoa: físico, intelectual, psíquico e social. E por "Senhor"
entendia o atendimento das "necessidades mais profundas da alma humana,
chamada a descobrir sua plenitude na vida de fé, esperança e caridade".12
Nessa família destaca-se a indispensável figura da Mãe, que encaminha
todos a Cristo. Passava ele horas diante da imagem da Nossa Senhora da Divina
Providência. Nunca duvidava da intercessão d'Aquela que lhe mostrara em sua
infância a envergadura de sua obra: "Ficai perto de Maria e procedei com
segurança" 13, recomendava a seus discípulos.
Mais necessário é
morrer bem...
Depois de passar inúmeras vicissitudes e provas, Dom Guanella viu, no
fim de sua existência, sua obra expandir-se por quatro continentes. Convencido
de que os homens são meros instrumentos, pois "è Dio che fa" - quem
faz é Deus -, o fundador estimulava o ardor missionário dos seus filhos e
filhas dizendo-lhes: "Vossa pátria é o mundo".14 Ele próprio
acompanhou a fundação de novas casas em outros países, como a dos Estados
Unidos, em 1912.
A obra guanelliana contou com valiosos apoios, inclusive do Papa São Pio
X, que distinguia o fundador com sua amizade. Ele mesmo lhe propôs a fundação,
perto do Vaticano, da Paróquia de São José al Trionfale, hoje basílica menor,
com uma casa assistencial para auxiliar as famílias que ali viviam em tugúrios.
Em meio a tantas atividades, ainda encontrou tempo para escrever
numerosas obras de formação cristã, além de mais de três mil cartas nas quais
transparecem suas virtudes, seu senso profético e seu particular amor aos
pobres e abandonados.
Um de seus últimos empreendimentos, e talvez o mais popular, foi a Pia
União do Trânsito de São José, erigida em 1913, para a assistência aos
moribundos. "Existe uma necessidade de viver bem", dizia ele,
"mas mais necessário é morrer bem. Uma boa morte é tudo, especialmente na
atualidade, quando as pessoas só pensam nas coisas materiais e em divertir-se,
rejeitando a eternidade".15
Coroando uma vida
santa, essa boa morte chegou também para Dom Guanella, em 24 de outubro de
1915, aos 73 anos de idade. Possa sua elevação à honra dos altares desvelar ao
mundo de hoje, tão confiante em si mesmo, o segredo de sua santidade como
modelo a ser seguido: abandonar-se nas mãos da Providência Divina, certo de
que, por mais que os homens atuem, "è Dio che fa"!
...
A espiritualidade
de Dom Luís Guanella baseava-se na compreensão do Evangelho como a história de
amor de um pai para com seus filhos: Deus cuida de cada um, especialmente dos
mais débeis e necessitados.
Irmã Juliane
Vasconcelos Almeida Campos, EP
Na tarde de 15 de março de 2002, um jovem americano, William Glisson,
patinava sem capacete em alta velocidade por uma rua de Springfield, em
Filadélfia, quando sofreu uma queda violenta, com consequências gravíssimas
devido a um forte traumatismo craniano. Levado ao hospital em estado de coma,
foi submetido a várias intervenções cirúrgicas nos dias subsequentes.
Entretanto, sua situação se agravava cada vez mais, restando- lhe poucas
esperanças de sobreviver, na melhor das hipóteses, com sequelas bem desafortunadas.
Quatro dias depois do acidente, na solenidade de São José, a Dra. Noreen
M. Yoder, amiga da família, entregou à mãe de William duas relíquias do Beato
Fundador da ordem religiosa à qual pertencia o hospital onde trabalhava,
recomendando-lhe recorrer a ele para obter a cura do rapaz. A piedosa senhora
prendeu uma das relíquias no pulso do filho e reteve consigo a outra, para
pedir ao Bem-aventurado o milagre. Logo se formou uma cadeia de orações nessa
intenção.
Contra todas as expectativas médicas, o jovem começou a reagir e vinte
dias depois recebeu alta, apenas com a prescrição de um programa de reeducação
funcional neuromotora. Oito meses após o acidente, já inteiramente
restabelecido, voltou a trabalhar como carpinteiro na empresa do pai.
Tal milagre, realizado por intermédio do Beato, permitiu satisfazer a
última exigência de seu processo de canonização. E será ele elevado à honra dos
altares, no rol dos santos da Igreja Católica, no dia 23 deste mês, na Praça de
São Pedro, em Roma.
Quem é este intercessor? Luís Antonio Guanella Bianchi, fundador da
Congregação das Filhas de Santa Maria da Providência e dos Servos da Caridade,
também conhecidos como guanellianos.
Notas:
1
DOM LUÍS GUANELLA. Autobiografia, apud CARRERA, Mario (Org.). Bem-aventurado
Luís Guanella. São Paulo: Paulinas, 2007, p.71.
2 Idem, p.71-72.
3 Idem, p.74.
4 Idem, p.59.
5 CARRERA, op. cit., p.60
6 DOM LUÍS GUANELLA. Autobiografia, apud CARRERA, op. cit., p.62.
7 Idem, p.103.
8 CARRERA, op. Cit., p.103.
9 Idem, p.117.
10 Idem, p.128.
11 MINETTI, SdC, Nino. Beato Luís Guanella. In: MARTÍNEZ PUCHE, OP, José A. (Org.) Nuevo Año Cristiano. 4.ed. Madrid: Edibesa, 2003, v.X, p.571.
12 Idem, ibidem.
13 AMARAL, Victor Vinícius M. Frase do Fundador. In: Efatá. Informativo do Aspirantado Guanelliano. Porto Alegre. Ano IV. N.27 (Maio, 2011); p.5.
14 MINETTI, op.cit., p.571- 572.
15 CARRO CELADA, José Antonio. Beato Luís Guanella. In: ECHEVERRÍA, Lamberto de, LLORCA, Bernardino, REPETTO BETES, José Luís. (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2006, v.X, p.659.
2 Idem, p.71-72.
3 Idem, p.74.
4 Idem, p.59.
5 CARRERA, op. cit., p.60
6 DOM LUÍS GUANELLA. Autobiografia, apud CARRERA, op. cit., p.62.
7 Idem, p.103.
8 CARRERA, op. Cit., p.103.
9 Idem, p.117.
10 Idem, p.128.
11 MINETTI, SdC, Nino. Beato Luís Guanella. In: MARTÍNEZ PUCHE, OP, José A. (Org.) Nuevo Año Cristiano. 4.ed. Madrid: Edibesa, 2003, v.X, p.571.
12 Idem, ibidem.
13 AMARAL, Victor Vinícius M. Frase do Fundador. In: Efatá. Informativo do Aspirantado Guanelliano. Porto Alegre. Ano IV. N.27 (Maio, 2011); p.5.
14 MINETTI, op.cit., p.571- 572.
15 CARRO CELADA, José Antonio. Beato Luís Guanella. In: ECHEVERRÍA, Lamberto de, LLORCA, Bernardino, REPETTO BETES, José Luís. (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2006, v.X, p.659.
(Revista
Arautos do Evangelho, Outubro/2011, n. 118, p. 32 à 35)
Nascimento
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